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INTERVENÇÃO ANTES DA ORDEM DO DIA

 

 

Recentemente, a Secretária para a Administração e Justiça (SAJ) apresentou publicamente um relatório do trabalho dos últimos dois anos. Em jeito de balanço, destacou muitos sucessos e realçou a elevada taxa de execução dos trabalhos, referindo que agora os serviços públicos estão mais próximos dos cidadãos.

 

Após a divulgação pública do balanço, tenho estado constantemente a ser abordado na rua e no meu gabinete de apoio, por muitos cidadãos e trabalhadores da função pública questionando os “níveis de satisfação da população” face à referida taxa de execução dos trabalhos.

Para que um balanço de trabalho seja fiável, mereça credibilidade e obtenha confiança da maioria das pessoas, o mesmo deveria ser feito por uma entidade independente, idónea e merecedora de confiança, porque ninguém é bom julgador em causa própria. Caso contrário, os trabalhadores da função pública não precisariam de ser avaliados anualmente pelos superiores hierárquicos, porque cada pessoa podia avaliar-se a si mesmo. Como diz o velho ditado “Quem vende flores dirá que as suas flores são as flores mais cheirosas” ou “Quem vende peixe dirá que seu peixe é o melhor peixe da região”. Enfim, seria mais correcto deixar à consideração da população a avaliação do trabalho desenvolvido pela SAJ nos últimos dez anos da RAEM.

 

Os cidadãos criticam o empolamento dos serviços públicos, demasiadas comissões consultivas e centros de informação, duplicação de serviços, falta de racionalização dos recursos humanos, sobreposição e duplicação de competências e os elevados gastos supérfluos. Mas em contrapartida, muitas vezes, os serviços públicos não oferecem qualidade de serviços nem contribuem para ajudar a resolver os seus problemas.

Por exemplo, os cidadãos reclamam constantemente que quando a Administração erra na tomada de decisões administrativas raramente volta atrás para rectificar a decisão errada, insistindo no erro para não perder face, obrigando os cidadãos a desembolsar dezenas de milhares de patacas para pagar honorários aos patrocinadores das suas causas para que estas sejam resolvidas em tribunal. Outra solução será desistirem de serem ressarcidos dos direitos violados por os valores em causa serem diminutos. Ou seja, a reclamação e o recurso hierárquico são neste momento mecanismos arcaicos, obsoletos e desinseridos da actualidade, que não estão ao serviço dos cidadãos, pelo contrário complicam o processo burocrático, o quotidiano da vida dos cidadãos, obrigando-os a comparecer para prestar declarações nos processos administrativos e de saberem de antemão que o resultado vai ser o mesmo ou seja a manutenção da mesma decisão errada.

 

Contudo, o mais relevante deste balanço, é que esta tutela, ainda não aprendeu bem a lição do mega escândalo de corrupção do século do ex-Secretário Ao Man Long que abusou dos seus poderes públicos em proveito próprio, aproveitou da omissão e lacunas de leis arcaicas que permitiram o abuso do poderes do seu cargo para proveito próprio.

O relatório do trabalho da tutela não aborda o contínuo aumento da promiscuidade entre alguns influentes empresários e a sujeição e subalternidade de algumas tutelas, dos dirigentes e inferiores hierárquicos aos caprichos e exigências destes empresários. Estas atitudes persistem por falta de modernização legislativa nomeadamente à falta de regulamentação do Regime Jurídico para a Aprovação dos Contratos de Empreitada de Obras Públicas e demais legislação específica.   

 

No próximo dia 20 Dezembro do corrente ano celebra-se o décimo aniversário do estabelecimento da RAEM. Fazendo um acto de contrição simples, breve e sumário dos principais factos que aconteceram nos últimos dez anos em Macau e na função pública, permite, mesmo aos mais afastados da matéria, compreender o desgosto e a tristeza da maioria da população e as causas da baixa moral da maioria dos trabalhadores da Administração Pública de Macau (APM).

 

Após o estabelecimento da RAEM, com o grande apoio do Governo Central através do CEPA e facilidade de entrada de turistas do interior do continente e muitas outras medidas facilitadoras foram criadas grandes expectativas no seio da maioria da população de Macau e nos trabalhadores da função pública que sob o lema de “Macau gerido pelas gentes de Macau” pudesse de facto elevar a qualidade de vida, o modelo de gestão de serviços públicos fosse norteado por resultados concretos e uma política de emprego e promoção no seio da função pública que premiasse o mérito dos seus trabalhadores.

 

Pelo contrário, sob a batuta de um governo empresarial, os dez anos da RAEM, ficarão marcados nos anais da história macaense, com o mega escândalo de corrupção do ex-secretário Ao Man Long, o expoente máximo de um enorme “iceberg” de corrupção ao mais alto nível de governação e de abuso de poder.

Os graves atrasos na modernização legislativa no âmbito da lei de Terras, dos concursos públicos e de aquisição de bens e serviços continua a permitir que continue a ser possível a concessão por preços de saldo dos terrenos vagos, aquisição directa de equipamentos, contratos de consultadoria e aquisição de bens e serviços por ajuste directo bastando invocar simples razões ou razões de urgência cujos fundamentos não interessa justificar. E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

A falta de transparência governativa, a manutenção dos monopólios legais e artificiais aliados à generalizada má governação contribuíram para aumentar a carestia de vida com a constante subida dos preços dos principais bens essenciais em contraste com estagnação dos salários, obrigando as famílias a redobrados sacrifícios principalmente por parte das famílias com maior agregado familiar, monoparentais e com familiares com parentes deficientes, não obstante vivermos num reino de tanta fartura. E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

 

Este decénio de governação de tendência empresarial ficará marcado pela violação diária dos direitos fundamentais dos trabalhadores do sector privado e da função pública facilitados pela ausência de legislação sindical e negociação colectiva. A Secretária para Administração e Justiça (SAJ) pecou por negligência grosseira ao desrespeitar continuamente ao longo dos anos a regulamentação dos direitos fundamentais dos trabalhadores constantes das Convenções Internacionais de Trabalho n.ºs 98 e 87 e que vigoram em Macau. E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

A burocracia administrativa dos processos laborais é vergonhosa e constitui um calvário para os trabalhadores que têm de “rogar” e “mendigar” constantemente autorizações à entidade patronal para prestarem declarações muitas vezes respeitantes a assuntos de “lana caprina”. Muitos desistem durante o “calvário”.

Enfim, o despedimento dos trabalhadores locais ocorre sempre com maior facilidade, porque também com grande facilidade são substituídos por trabalhadores não residentes. Tudo isto afinal contribui para diminuir a qualidade vida da maioria dos residentes. Ainda esta manhã, recebi, no meu gabinete, queixa de uma trabalhadora não residente que foi despedida pelo simples facto de ter cometido o “pecado” de ter ficado grávida.

Pedi-a para apresentar de imediato queixa na DSAL, mas o referido serviço público mandou-a embora alegando que a legislação especial dos direitos dos trabalhadores não residentes somente entrará em vigor no próximo ano. Entretanto a entidade patronal e com toda a calma muito provavelmente estará neste momento a processar a tramitação administrativa para substituição de outro trabalhador não residente. E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

Na altura em que a RAEM foi constituída, os cidadãos e os trabalhadores depositaram grande esperança nos nossos governantes e que os seus problemas seriam tratados de uma forma justa, igual e em tempo útil.

Contudo, numa altura em que a RAEM está prestes a celebrar o seu décimo aniversário, a decepção da população e da maioria dos trabalhadores da função pública é generalizada quanto ao desempenho do Governo.

Vejamos a título exemplificativo que, com a entrada em vigor do novo regime de carreiras, a maioria dos milhares de trabalhadores do sector administrativo e adjuntos técnicos (índices 195 e 260) encontram-se desmoralizados e desmotivados sentindo-se tratados pelo Governo como meros “trapos” da cozinha.

O pessoal de ambas carreiras, na realidade diária, fazem a mesmo tipo de trabalhos e alguns até executam trabalhos da responsabilidade de técnicos superiores, por entretanto terem obtido habilitações mais elevadas, mas contudo continuam a ser explorados nos seus salários vencendo índices inferiores e não correspondente ao trabalho que executam. E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

Mais grave, alguns destes funcionários, começaram a receber salários em atraso, porque os SAFP, após a entrada em vigor do novo diploma das carreiras, tornaram-se, de um dia para outro, num super serviço, exigindo que todas as alterações às clausulas contratuais e todas as promoções têm de passar pelo seu crivo, resultando em demoras dois meses face ao elevado número de serviços, a espera da “bênção”.

Ou seja, o SAFP até parecem que estão pretender substituir o ex-Tribunal de Contas na fiscalização da legalidade dos contratos administrativos, e individuais de trabalho ou seja, criou-se mais burocracia, mais complexidade, mais duplicação de serviços, mais pessoal envolvido na burocracia, mais prejuízos, mais ansiedade para os trabalhadores da função pública e mais custos ao erário público. E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

O que é admirável, é que SAJ não menciona estes problemas no seu famoso “balanço” desconheça os problemas, ou conhecendo-os nada faça para resolve-los. Como de costume, a “culpa” morre solteira e ninguém tem de assumir responsabilidades pelos atrasos no pagamento de salários. E já não é a primeira vez que isto aconteça. Que belo exemplo dá o Governo ao sector privado e que moral terá no futuro para exigir que as empresas locais respeitem a Lei de Trabalho pagando salários no seu devido tempo? E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

Desde o estabelecimento da RAEM, que a maioria dos trabalhadores da função pública estão desmoralizados com a eliminação, sem justificações, do sistema de pagamento de pensões de aposentação e sobrevivência dos trabalhadores da função pública implementado em 1986. Este sistema é tão bom que a maioria dos dirigentes e mesma a própria Secretária para Administração e Justiça optaram por não mudar para o sistema de regime de previdência. Assim, todos os trabalhadores do quadro que ingressaram para a função pública a partir de Janeiro de 2007 incluindo o pessoal das forças de segurança, ficaram prejudicados quando comparados com os seus colegas de trabalho que beneficiam do regime de pensões de aposentação, com excepção do pessoal da magistratura que continua ainda a beneficiar deste antigo regime. E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

Em substituição do regime de pensões foi criado em Janeiro 2007 o regime de previdência em que os trabalhadores da APM são obrigados a “jogar” na bolsa e somente em certas empresas pré-selecionadas pelo Governo, resultando até a data em elevadas perdas para a maioria dos mesmos, por não terem experiência em aplicações financeiras na bolsa de valores mobiliários. Quanto à maioria do pessoal do quadro que não optou pelo novo inseguro regime de previdência que ainda beneficia do anterior regime de pensões e sobrevivência, estes vão fazendo a contagem retrógrada do seu tempo de serviço que ainda falta a fim de submeter o respectivo pedido de aposentação voluntária. E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

Ainda hoje, mesmo após a entrada em vigor do novo regime de carreiras, muitos serviços públicos continuam a explorar os trabalhadores com contratos atípicos, tais como contratos de tarefa e aquisição de serviços para execução de trabalhos de longa duração e com subordinação hierárquica desrespeitando a segurança, estabilidade e continuidade dos postos de trabalho. Simplesmente não tratam as pessoas com dignidade. Com estes tipos de contratos atípicos exploram-se os trabalhadores nas suas horas extraordinárias, umas vezes invocando falta prévia de cabimentação, outras vezes por falta de orçamento. Instituem-se ilegalmente horários de trabalho especiais à revelia das regras gerais de do ETFPM, atrasam-se no pagamento de salários sem dar qualquer justificação, alteram-se os prazos dos contratos de um ano para seis meses e posteriormente para três meses consoante os caprichos de quem detêm o poder omnipotente.

Alguns serviços públicos até têm o descaramento de obrigar os trabalhadores a trabalharem nos fins-de-semana sem qualquer tipo de compensação, obrigam a transportar consigo os aparelhos de contacto “pager” impedindo-os de ausentar da RAEM nos dias de descanso semanal.

Será que a Senhora Secretária não tem conhecimento destes abusos? É evidente que tem pleno conhecimento, mas ignora ou camufla, então não terá que assumir as devidas responsabilidades por deficiente cumprimento das suas obrigações como titular de um dos principais cargos públicos? E já agora, onde paira a legislação que responsabiliza os titulares dos principais cargos públicos? Como serão responsabilizados estes altos responsáveis por erros administrativos aquando do exercício das suas funções e não depois do mandato?  E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

Com a proliferação dos contratos individuais de trabalho e mesmo dos contratos de assalariamento, os trabalhadores de muitos serviços públicos são obrigados a ser “obedientes” e a respeitar de uma forma “cega”, as ordens e instruções verbais a fim de evitar “retaliações e perseguições” e não se atrevem de maneira nenhuma a manifestar o seu desagrado, mesmo perante flagrantes injustiças e ilegalidades, porque sabem de que nada lhes vale denunciá-las, porque os contratos de trabalho podem não ser renovados mesmo tendo razão como aconteceram com vários casos concretos na Direcção dos Serviços de Estatísticas e Censos e DSEJ.

Estes trabalhadores estão conscientes que serão despedidos, sem dó nem piedade ou despedidos de uma forma camuflada através da não renovação dos contratos de trabalho, como aconteceu por exemplo com os dois professores da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) e que deu origem a um grande manifestação de solidariedade com a participação de mais de mil trabalhadores de diversos serviços públicos. E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

Mas o balanço da SAJ também não aborda o grande problema que tem a ver com a instituição de um sistema geral de remunerações e benefícios aos trabalhadores da função pública em que Os de cima engordam e vivem bem, os de baixo emagrecem e passam fome” criando grave discriminação entre a classe dirigente e chefias e os trabalhadores da linha de frente. Este sistema agravou ainda mais a desmoralização que vinha sendo cada vez mais acentuada desde o estabelecimento da RAEM.

Enquanto alguns dirigentes recebem em retroactivos na ordem de centenas de milhares de patacas passando um Feliz Natal, temos trabalhadores da linha de frente como no IACM que passaram para o novo regime sem acréscimo de um único centavo. 

 

Vejam, sintam por favor, como têm sofrido os trabalhadores de segunda classe do IACM que aguardam muitos anos pela equiparação salarial com os colegas de outros serviços públicos porque foi criado um sistema de remunerações diferenciado e muito discriminatório. Como podem estar moralizados estes trabalhadores quando são despromovidos em forma maciça logo depois do estabelecimento da RAEM e ainda mais com a entrada em vigor do novo regime de carreiras? E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

A maioria dos trabalhadores, incluindo os agentes das Forças de Segurança de Macau (FSM) estão há muitos anos à espera da actualização dos subsídios de residência, família e outros, que remontam à década de oitenta, hoje totalmente desactualizados e fora do contexto social.

Por outro lado, há a urgente necessidade de actualizar os salários dos trabalhadores da função pública que se encontram estagnados há mais de dois anos e têm contribuído para a diminuição da sua qualidade de vida devido à subida vertiginosa dos preços dos principais bens essenciais, rendas e preços das habitações.

E o balanço da SAJ ignora por completo.

 

Enfim, face aos «sucessos» de que a Secretária para a Administração e Justiça (SAJ) se vangloria e propagandeia, melhor seria alguma modéstia de forma a reconhecer o que se devia ter feito e não foi realizado e, ter a coragem de enfrentar os problemas e não camufla-los ou esconder nas suas “gavetas” e nos serviços que tutela e as muitas coisas boas que da sua responsabilidade foram destruídas.

 

 

O Deputado à Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau aos 11 de Dezembro de 2009.

 

José Pereira Coutinho

 

 

 

 

 

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