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O projecto de todas as suspeitas

 

João Miguel Barros* --

 

 

 

 

 

1. O “Projecto de Prevenção e Repressão da Corrupção no Sector Privado” prometido pelo Chefe do Executivo, acaba de ser divulgado. Esse é o pretexto para os comentários de ordem geral que ficam neste artigo, à margem das questões técnicas que o diploma possa levantar.
Comecemos, então, pelo princípio. E o princípio é o título dado ao projecto, que permite uma interrogação: onde estão as normas nesse diploma visando a “Prevenção” da corrupção? Pois: pura e simplesmente não existem! A menos que para o Chefe do Executivo a “prevenção” equivalha à interessante ideia de criação de um quadro de severa repressão penal para evitar que as pessoas caiam em escusadas tentações...

2. A verdade é que a prevenção passa por tudo aquilo que não está neste projecto e que devia ter sido uma das preocupações fundamentais do Governo – área em que falhou claramente – ao longo de todos estes anos.
A prevenção passa pela criação dos princípios da modernização da Administração Pública, da simplificação dos procedimentos, da responsabilização de todos os intervenientes na hierarquia administrativa.
Nem sempre o problema da ineficácia reside nos funcionários, que muitas vezes estão maniatados pelo sistema. A verdade é que os serviços públicos, de um modo geral, funcionam com uma excessiva e insustentável carga burocrática que impossibilita a tomada de decisões em tempo útil.
E, nos últimos anos, em resultado das campanhas feitas pelo CCAC, os serviços públicos optaram pela inacção, na lógica simples de que quanto menos se fizer e menos se decidir, menores serão os riscos de serem lançadas suspeitas ou de as pessoas caírem nas malhas de investigações cruzadas. É humano: podendo evitar-se a maçada que todas estas coisas acarretam, para quê fazer alguma coisa? É muito mais simples não decidir, empurrar para dentro da gaveta e fazer de conta que “nim”!
Neste quadro, com que autoridade moral vem o Governo falar de concorrência leal e de ética nos negócios? Com que autoridade vem falar em “sociedade aberta, transparente, justa e íntegra”?

3. A Administração Pública não se pode justificar como um fim em si mesmo. Existe para servir as pessoas e as empresas, e para intermediar as necessidades públicas e privadas. Tão só e apenas isso.
A prevenção da corrupção no relacionamento entre a Sociedade Civil e o Administração faz-se, pois, na base de regras claras, procedimentos céleres e transparentes e na implementação de uma postura, por parte de quem nela trabalha, de servir o interesse público.
Um empresário que vê o seu projecto aprovado nos prazos da lei, que vê as inspecções e vistorias marcadas no momento adequado, que obtém as suas licenças sem atrasos, etc., não precisa de “comprar facilidades”.
É por isso que defendo há muito tempo que as “taxas de urgência” previstas na lei deviam ser todas abolidas. Todos os assuntos deviam ser considerados pela Administração como urgentes. E num Estado de Direito não se conferem privilégios desproporcionados, nem se contraria o dever público de dar a justa oportunidade económica a todas as pessoas.

4. O combate à corrupção faz-se também, é certo, com campanhas de prevenção e de consciencialização cívica sobre valores e éticas negociais.
Mas não se faz com campanhas de marketing, como aquelas que são promovidas pelo CCAC, onde impera o enaltecimento narcisistíco da instituição. (Até o modo como este diploma tem sido noticiado na imprensa mostra o poderio dessas acções: repare-se que a iniciativa tem sido divulgada como sendo a que visa “estender as competências do CCAC ao sector privado”, em vez de ser referida como a iniciativa de criminalização da “corrupção” na actividade empresarial privada! Ou seja, o centro de gravidade está nos poderes do CCAC que passam a ser alargados!... )
Retomando o raciocínio: a prevenção da corrupção não se faz no apelo à inqualificável e repugnante denúncia anónima, sem rosto, própria das sociedades suportadas no medo, como aquela que tem vindo a ser construída nos dois últimos anos. Um medo que paralisa e que impede o exercício de uma cidadania livre e responsável.
Há pois um trabalho de consciencialização que deve ser feito, pela positiva, evidenciando as vantagens de uma sociedade honesta e transparente, assente em valores e não no medo e nunca na denúncia anónima. O problema é que esses bons princípios ficam totalmente atulhados nas más práticas: o exercício da necessária transparência tropeça nos requerimentos dirigidos aos serviços públicos que não têm resposta, nos pedidos que ficam aguardar decisão eterna, nas disputas de poder entre Departamentos de um mesmo Serviço Público, até no sumiço dos papeis ou dos dossiers!
A luta contra a corrupção tem de ser assumida colectivamente e sem a intermediação de nenhuma entidade policial a assumir-se como fiscal dessa consciência colectiva e de guardião exclusivo dos valores da integridade e da moralidade.

5. Chegados aqui, importa fazer uma afirmação de princípios e uma declaração de interesses. Uma e outra são complementares.
A afirmação de princípios é inequívoca: sou frontalmente contra a corrupção e as práticas que distorcem a concorrência leal.
Segue-se a “declaração de interesses”: tenho assumido uma posição frontal aos métodos seguidos pelo CCAC e tenho sido crítico de algumas práticas adoptadas nestes últimos dois anos. Práticas de obstrução ao mandato judicial e ao exercício do direito de defesa das pessoas, e de cometimento de graves ilegalidades processuais em processos de investigação criminal (em que a violação do segredo de justiça até nem é dos mais graves). Sustento nos Tribunais os fundamentos das razões da minha profunda discordância em relação a esse pontos, pelo que me considero impedido de os desenvolver aqui, com outro detalhe.
Mas a cartilha de más práticas do CCAC está documentada. Por isso a pergunta: é neste CCAC que se vai depositar o poder de investigação, fiscalização e aprofundamento de todas as suspeições que venham a surgir na actividade económica privada da RAEM?

6. Segunda declaração de princípios, e inegociável: a criminalidade combate-se com mão firme e convicção, mas no absoluto e escrupuloso respeito da Lei!
O desígnio de uma sociedade mais justa deverá passar, pois, por impor ao CCAC normas inultrapassáveis de actuação no respeito dos direitos individuais. Deverá passar pela eliminação total do regime de excepção que a lei lhe atribui, do qual resulta, por exemplo, o poder de constituir qualquer pessoa arguida sem que essa pessoa tenha a possibilidade de se defender judicialmente, e de a manter tendencialmente nessa situação por toda a vida. Ou, pelo menos, pelo tempo que quiser. Isto acontece porque o CCAC, ao contrário do Ministério Público, não tem qualquer prazo legal para concluir as suas investigações (com excepção dos casos em que exista alguém em prisão preventiva).
A luta por uma sociedade mais transparente deverá passar igualmente por sujeitar o CCAC ao escrutínio do Ministério Público – o que não acontece, porque a lei o excepciona do dever geral de o fazer – e por o submeter à supervisão de uma Comissão Independente de Fiscalização e de Acompanhamento da sua actividade, que exerça eficaz e diligentemente as suas competências.
É bom não esquecer que o CCAC, pelo modo como está “encaixado” na Lei Básica, é não só um órgão de investigação criminal, como também um órgão político, que depende do Chefe do Executivo; daí a possibilidade de existirem critérios de oportunidade na abertura dos e no modo de se conduzirem as investigações.
Ora, também por estas razões, a actividade do CCAC não poderá estar nas margens de um rigoroso escrutínio judicial e político.

6. O projecto de lei agora apresentado é uma manifestação de exercício do poder político. E em política não há lugar a ingenuidades ou esquecimentos. Existem propósitos.
Ora, sendo assim, cabe perguntar: porque razão o Chefe do Executivo ignorou a recomendação que a Assembleia Legislativa lhe fez em 28 de Fevereiro de 2008, para proceder, nesta oportunidade, à revisão dos poderes de excepção que a Lei 10/2000 atribui ao CCAC? Terá isso acontecido porque, como se escreveu nos jornais, o projecto terá sido feito pelo CCAC, afinal o principal beneficiário dos novos poderes, e que deliberadamente omitiu o que não lhe interessava?
Outras questões que deveriam ser aprofundadas, ainda que na sede própria: como é que se preenchem os elementos do tipo do crime de corrupção na actividade privada? O projecto não deixará demasiadamente em aberto os conceitos essenciais? Como se explica o critério de fixação da medida das penas propostas? Não serão elas, em alguns casos, desajustadas e desproporcionadas comparativamente a outro tipo de crimes? Será o projecto equilibrado no contexto do sistema existente e no quadro de valores que queremos partilhar?
Enfim: questões a que a Assembleia Legislativa terá de prestar cuidada atenção, ponderando politicamente o impacto deste diploma e o seu equilíbrio no contexto geral do sistema jurídico em vigor.

7. O
projecto que o Chefe do Executivo apresentou à Assembleia Legislativa assenta, pois, em fragilidades que permitem classificá-lo como o projecto de todas as suspeitas.
A sociedade de Macau tem de se reconciliar com o presente e enterrar os fantasmas que, eventualmente, ainda subsistam do passado. E, acima de tudo, tem de viver em paz. Este projecto de lei, tal como está estruturado, dificilmente o irá permitir no actual contexto civilizacional da RAEM.


* Advogado

 

 

hoje macau 25.03.2009

 

 

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